quinta-feira, 29 de maio de 2014

Decisão judicial traz à tona debate sobre a intolerância contra religiões de matriz africana

Natasha Pitts - Do Site da Adital


Há alguns dias, a decisão polêmica do juiz Eugenio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, causou indignação. Ao ser solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF) para a retirada de vídeos da Internet com conteúdo ofensivo contra religiões de matriz africana, o magistrado negou o pedido com a justificativa de que candomblé e umbanda não seriam religiões, pois não têm os traços necessários (existência de um texto base, de estrutura hierárquica e de um deus a ser venerado) para serem caracterizadas como tal. A partir daí, ganharam força manifestações de apoio às religiões de terreiro e o clamor popular fez o juiz reconhecer que os cultos afros constituem, de fato, religiões. Contudo, a decisão pela não retirada dos vídeos foi mantida em nome da "liberdade de expressão”.
O fato deu abertura a debates e questionamentos. Afinal, a decisão do magistrado pode ser compreendida como uma manifestação de intolerância religiosa? Por que negar direitos já estabelecidos na legislação brasileira?
O Código Civil estabelece que "são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”. O artigo 5º da Constituição Federal também enuncia que "o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
"As pessoas que vivem as religiões de matriz africana consideram que vivem uma religião e uma experiência religiosa e isso deveria bastar. Consideram, também, que suas religiões compartilham elementos comuns e elementos diferentes em relação a outras manifestações também intituladas religiosas. O importante para elas, creio, é que sejam reconhecidos simultaneamente o caráter profundamente religioso de suas ideias e de suas práticas, e os modos singulares pelos quais essas ideias são pensadas e essas práticas são elaboradas”, defende em entrevista à Adital Marcio Goldman, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Não é de hoje que as religiões de matriz africana são tratadas com preconceito, medo e repúdio, sentimentos que podem ser oriundos do desconhecimento sobre as práticas religiosas de terreiro. Apesar disso, pelo menos desde meados do século XIX, as religiões de matriz africana que se instalaram no Brasil conseguiram recriar em sua nova casa, as crenças e os rituais de sua tradição ancestral, respeitando, inclusive, os princípios científicos que definem o que seja religião.
O sociólogo e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser) do Rio de Janeiro, Clemir Fernandes, lembra que o diferente quase sempre é motivo "mais de desconforto do que de simpatia e acolhimento”. Sendo assim, os preconceitos e seus desdobramentos como as intolerâncias surgem de um ambiente de estigma da diferença, ao invés de perceber beleza e interesse pela alteridade.
"As mudanças sociais, notadamente as alterações de pertencimento religioso porque tem passado a sociedade brasileira, em especial nos últimos 30 anos, conduziram ao cenário que temos hoje. Sempre houve intolerância religiosa em nossa sociedade, mas era ignorada, camuflada ou não divulgada. Até por conta do contexto autoritário, sem liberdade de manifestação e de acesso aos meios de comunicação dos grupos mais estigmatizados. Num mundo plural e de mais democracia, a diversidade aumenta e as tensões também. As bases de nossa formação como nação resultam numa identidade nacional mais forte do que qualquer outra, mesmo a religiosa. Bem diferente de alguns outros países. Talvez por isso, as intolerâncias tenham crescido aqui, mas não chegado a níveis alarmantes de violências inclusive com mortes frequentes como ocorre em outras partes do mundo”, explica.
O sociólogo também lembra que no contexto brasileiro as religiões chamadas de matriz africana sofreram estigma, preconceito e violência de demonização desde os primórdios do período colonial. "Isso está enraizado na cultura e tem se reproduzido secularmente”, esclarece.

Analisando a decisão do magistrado, Goldman aponta que, muitas vezes, decisões na aparência puramente jurídicas acabam corroborando práticas de discriminação.
"A chamada ‘liberdade de expressão’ é constantemente utilizada como cobertura legal para declarações e práticas extremamente discriminatórias. Se recordarmos, por exemplo, a violenta reação social, política e jurídica quando do episódio chamado de "chute na santa”, podemos perceber que, no caso das ofensas às religiões de matriz africana, o princípio da ‘liberdade de expressão’ foi considerado mais importante do que os de liberdade religiosa e de não discriminação religiosa, que prevaleceram no caso das ofensas ao catolicismo”.
Nas redes sociais e meios de comunicação, babalorixás, filhos de santo e frequentadores de terreiros manifestaram o temor de que a decisão do magistrado pudesse causar um agravamento do preconceito, da discriminação e até mesmo dos atos de violência tão comuns contra essas religiões. Goldman acrescenta ainda que, "no caso dessas religiões que abrigam um grande contingente de pessoas negras, o preconceito, a discriminação e a violência propriamente religiosos são indissociáveis do racismo que permeia a sociedade brasileira”.
Fernandes analisa o acontecido por outro ângulo e defende que "paradoxalmente, pode se dizer que a decisão do juiz foi ‘positiva’ porque tira da penumbra uma visão e ajuda a qualificar e ampliar o debate acerca da cidadania para todos, inclusive de natureza religiosa. Sem discriminação”, defende.
O fato é que as tensões de natureza religiosa são comuns e surgem do aumento da pluralidade de crenças, apesar disso, a cada um deve ser dado o direito de professar sua fé e tê-la reconhecida e respeitada, ao invés de tolerada.
"A própria noção de "tolerância” deveria ser problematizada uma vez que ela, em geral, designa, como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, "uma posição contemplativa, dispensando as indulgências ao que foi ou que é”. O que significa que a tolerância sempre envolve um sentimento de superioridade que permite até mesmo ser "tolerante” com os outros. O ponto, creio, não é clamar por tolerância, mas lutar por um mundo em que as diferenças possam se relacionar enquanto diferenças, sem se apagar, um mundo em que todos sejamos afetados pelas relações que inevitavelmente estabelecemos com o diferente”, defendeu Goldman.

Natasha Pitts

Jornalista da Adital

terça-feira, 27 de maio de 2014

Já está a venda a cartilha ELEIÇÕES 2014, da CNBB


O Centro Nacional de Fé e Política “Dom Helder Câmara (Cefep), organismo vinculado à CNBB, em parceria com outras entidades, lançou a cartilha “Eleições 2014”, cuja temática é “Seu voto tem consequências: um novo mundo, uma nova sociedade”. O subsídio foi apresentado durante a 52ª Assembleia Geral da CNBB e entregue aos bispos.
 Na apresentação do material, o bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Cultura e a Educação da CNBB, dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, orienta que a cartilha seja estudada nas dioceses, grupos, comunidades, para um “grande movimento de cidadania e vivência da fé”. De acordo com dom Joaquim, o texto quer ajudar os cristãos a se prepararem para as eleições de outubro. A reflexão proposta pela cartilha utiliza o método ver, julgar e agir.
“Com o olho nas eleições, vemos o Brasil que temos com suas conquistas e desafios, com suas luzes e sombras”, disse dom Joaquim Mol. Ao final da apresentação, o bispo disse “ter a alegria de expressar o apoio da CNBB a este relevante trabalho” proposto na cartilha das “Eleições 2014”.
Para aquisição da cartilha, acesse: www.cpp.com.br ou 0800.703.8353.
(Com informações da CNBB)

quinta-feira, 22 de maio de 2014

As políticas brasileiras em relação às mudanças climáticas ainda são ineficientes.

Na entrevista  concedida à IHU On-Line por telefone, Oswaldo Lucon informa que o Brasil é um dos países que ainda investe 80% dos recursos financeiros em energia fóssil. “Esse perfil de investimento mostra o caminho que estamos seguindo.” O pesquisador esclarece que, apesar de o Brasil ter reduzido o desmatamento para contribuir com os efeitos das emissões de gás carbônico, as políticas brasileiras em relação às mudanças climáticas ainda são ineficientes.
“Há uma agenda de competividades econômicas e, nesse sentido, existem vários discursos, alguns bonitos, de que precisamos salvar o Planeta, mas, no fundo, o debate econômico permeia a discussão e fica essa queda de braço nas negociações”, avalia o engenheiro. 
Oswaldo Lucon é um dos pesquisadores brasileiros que participa da elaboração do relatório de mitigações do IPCC, o qual trata de como deve ser feito o abatimento das emissões, e é categórico na sua avaliação: a redução das emissões depende da “redução no consumo de combustíveis fósseis”. Entretanto, destaca, como “está havendo uma mudança no xadrez mundial”, há vários interesses econômicos por trás das discussões climáticas.

Segundo ele, “elas são fortemente baseadas na seguinte narrativa: o Brasil é um país limpo, tem a matriz energética limpa, a maioria das nossas emissões vem do desmatamento, mas nós conseguimos controlá-lo, fizemos mais do que todos os países, estamos muito bem na foto, portanto, os outros países não venham nos cobrar”.
Esse discurso, contudo, “precisa ser visto com cuidado, porque a emissão mitigada pela queda do desmatamento só acontece uma vez. Depois que você mantém a árvore em pé, ela tem de ficar em pé para sempre, ao passo que, quando se constrói uma nova termelétrica, ela vai continuar emitindo gás carbônico durante 50 anos”. E acrescenta: “Então, a fotografia das políticas brasileiras acaba em 2020 e ninguém conta como vai ser o filme depois. (...) As metas brasileiras são muito lenientes e, de fato, o Brasil não tem nenhuma meta de emissão que implique algum esforço adicional”.
Oswaldo Lucon é graduado em Engenharia Civil e em Direito pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP, mestre In Clean Technology pela University of Newcastle Upon Tyne, Reino Unido, e doutor em Energia pelo Programa Interunidades em Energia, Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. Atualmente é Assessor Técnico de Gabinete da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo e professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é possível evidenciar no quinto relatório do IPCC em relação aos anteriores e quais são as principais conclusões do relatório de mitigações do IPCC, lançado este ano?
Oswaldo Lucon - Os três últimos relatórios são muito mais robustos tecnicamente do que os anteriores: houve mais dados, a informação melhorou muito e isso aconteceu por conta da pressão da evidência do aquecimento global. O nível de dúvida sobre o aquecimento global ser ou não ser causado pelo homem é inferior a 5%. Então, a chance de não ser causado pelo homem é baixíssima. Lembrando que não temos outro planeta para fugir, esses relatórios devem ser levados muito a sério.
O primeiro relatório diz que existe um espaço na atmosfera que ainda pode ser ocupado por emissões, mas esse espaço é muito pequeno, cerca de 1.000 a 1.200 gigatoneladas de gás carbônico equivalente, ou seja, um trilhão de toneladas de gás carbônico equivalente até o fim do século por todos os países. Se considerarmos as emissões de todos os países do jeito que estão emitindo hoje, estamos indo numa rota provável de quatro graus a mais na temperatura da Terra, apesar de os países terem acordado, na conferência de Durban, na África do Sul, que o aumento máximo e tolerável na temperatura seria de dois graus. As janelas de oportunidades para a mitigação, segundo o relatório, estão se fechando, quer dizer, as possibilidades de se atingir essa meta dos dois graus são cada vez mais difíceis; estamos diante de um desafio. O IPCC não usa a palavra urgência, mas a situação vai ficando muito mais difícil, porque há uma urgência de fato.
Continue lendo a entrevista diretamente no site do IHU-ON Line, CLICANDO AQUI >>>>>

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Financiamento privado de campanha eleitoral: Silval e Mendes teriam recebido R$ 8 milhões para campanhas

Bom Dia Brasil, programa da rede Globo, mostrou Eder e Riva chegando a Brasília

Secom MT


O prefeito Mauro Mendes e o governador Silval Barbosa, que teriam recebido dinheiro para campanha
DA REDAÇÃO do MÍDIA NEWS
Bom Dia Brasil, da Rede Globo, repercutiu os desdobramentos da Operação Ararath, da Polícia Federal, em Cuiabá.

O telejornal mostrou as imagens de Eder Moraes José Riva desembarcando em Brasília, onde foram detidos para não prejudicar a continuidade das investigações.

A reportagem afirma que o senador Blairo Maggi (PR) é suspeito de ter usado uma instituição financeira clandestina para conseguir empréstimos para conseguir empréstimos, quando era governador.

"Ele teria recebido R$ 4 milhões, em 2009, e repassado a um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado", diz.

O jornal cita que o gabinete do prefeito Mauro Mendes (PSB) e casa de Silval Barbosa (PMDB) foram alvos de busca e apreensão.

"Os policiais buscavam caderno que teriam anotações sobre parte do dinheiro dos empréstimos fraudulentos. Segundo o inquérito, o esquema injetou pelo menos R$ 8 milhões nas campanhas eleitorais de Mendes e Silval".

Clique AQUI e assista a reportagem do Bom Dia Brasil.

Fonte: MÍDIA NEWS

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Coleta de assinaturas para mudar o jeito de fazer política no Brasil



A Arquidiocese de Belo Horizonte, em comunhão com a Igreja do Brasil, convida todos os cidadãos a participarem da grande mobilização que objetiva levar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre a Reforma Política. Essa Proposta é fruto da união de mais de 100 entidades, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e União Nacional dos Estudantes (UNE).


Entre as principais mudanças indicadas pelo documento estão: a proibição de doações de recursos financeiros de empresas para campanhas eleitorais; a mudança no sistema de votação, sendo feito em dois turnos, no qual, no primeiro, o eleitor votaria em um programa, em ideias e, no segundo turno, escolheria as pessoas que irão colocar em prática o projeto; a equiparação entre o número de homens e mulheres no meio político, sendo que, para cada candidato homem, teria uma mulher; e a regulamentação do artigo 14 da Constituição de 1988, que trata dos instrumentos de participação popular.

Para que a proposta se torne um projeto de lei de iniciativa popular, é preciso reunir mais de 1,5 milhão de assinaturas. Todos são convidados a aderir e, também, a pedir o apoio de pessoas próximas. Um pequeno gesto pode fazer grande diferença.

Para ajudar, basta imprimir o formulário (clique aqui para visualizá-lo), preenchê-lo e entregar no Vicariato Episcopal para a Ação Social e Política da Arquidiocese de Belo Horizonte. O endereço é Rua Além Paraíba, 208, bairro Lagoinha. O CEP é 31210-120.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Nova Ordem Urbana? PEC51 e a desmilitarização da polícia

 
Luiz Eduardo Soares
Luiz Eduardo SoaresCrédito: Site do autor

A reforma do modelo policial se configura como um dos temas para a constituição de uma nova ordem urbana no Brasil. Nesta entrevista Luiz Eduardo Soares defende a desmilitarização da polícia, e aponta que este é apenas o primeiro passo para o caminho árduo de construção de uma sociedade “efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos”.

A entrevista com Luiz Eduardo Soares foi publicada originalmente no site (http://www.luizeduardosoares.com) e cedida ao Observatório das Metrópoles com o objetivo de ampliar o debate sobre o tema reforma do sistema de segurança pública no Brasil e a desmilitarização da polícia.
Luiz Eduardo foi um dos principais elaboradores da Proposta de Emenda à Constituição 51, que visa, segundo ele, reformar o modelo policial. Atualmente, a PEC-51, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT/RJ), está em tramitação no Senado Federal. A Casa legislativa está aplicando uma enquete sobre a Desmilitarização das Polícias e dos Bombeiros no Brasil; a referida pesquisa tem por finalidade dar um direcionamento à tramitação naquela casa da PEC 51. A enquete fica no ar até o dia 15/05/2014 e pode ser acessada através do link:

ENTREVISTA
Luiz Eduardo Soares
‘A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial’
Nós temos uma polícia e um corpo de bombeiros que é militar. Você há muito tempo defende a desmilitarização. Por quê?
Considero a desmilitarização das polícias indispensável e a dos bombeiros absolutamente conveniente, ainda que essa mudança não seja suficiente. Mesmo porque nossas polícias civis não têm menos problemas do que as militares. Em primeiro lugar, é preciso saber o que significa, para uma polícia, ser militar. No artigo 144 da Constituição, significa obrigá-la a copiar a organização do exército, do qual ela é considerada força reserva. O melhor formato organizacional é aquele que melhor permite à instituição cumprir suas finalidades. Finalidades diferentes requerem estruturas organizacionais distintas. Portanto, só faria sentido reproduzir na polícia o formato do exército se as finalidades de ambas as instituições fossem as mesmas. Não é o que diz a Constituição. O objetivo do exército é defender o território e a soberania nacionais.
Para cumprir essa função, tem de organizar-se para realizar o pronto emprego, ou seja, mobilizar grandes contingentes humanos e materiais com máxima celeridade e rigorosa observância das ordens proferidas pelo comando. Precisa preparar-se para, no limite, fazer a guerra. Pronto emprego exige centralização decisória, hierarquia rígida e estrutura fortemente verticalizada. Nada disso se aplica à polícia militar. Seu papel é garantir os direitos dos cidadãos, prevenindo e reprimindo violações, recorrendo ao uso comedido e proporcional da força. Segurança é um bem público que deve ser provido universalmente e com equidade pelos profissionais incumbidos de prestar esse serviço à cidadania. Os confrontos armados são as únicas situações em que alguma semelhança poderia haver com o exército, ainda que mesmo nesses casos as diferenças sejam marcantes. Mas eles correspondem a menos de 1% das atividades que envolvem as PMs. A imensa maioria dos desafios enfrentados pela polícia ostensiva são melhor resolvidos com a adoção de estratégias incompatíveis com a estrutura organizacional militar. Refiro-me ao policiamento comunitário, os nomes variam conforme o país.
E em que sentido o policiamento comunitário distingue-se das ações militares?
Essa metodologia é inteiramente distinta do “pronto emprego” e implica o seguinte: o ou a policial na rua não se limita a cumprir ordens, fazendo ronda de vigilância ou patrulhamento ditado pelo estado-maior da corporação, em busca de prisões em flagrante. Ele ou ela é a profissional responsável por agir como gestora local da segurança pública, o que significa, graças a uma educação interdisciplinar e altamente qualificada: diagnosticar os problemas e identificar as prioridades, em diálogo com a comunidade, mas sem reproduzir seus preconceitos; planejar ações, mobilizando iniciativas multissetoriais do poder público, na perspectiva de prevenir e contando com o auxílio da comunidade, o que se obtém respeitando-a.
Para que haja esse tipo de atuação, é imprescindível valorizar quem atua na ponta, dotando essa pessoa dos meios de comunicação para convocar apoio e de autoridade para decidir. Há sempre supervisão e interconexão, mas é preciso que haja, sobretudo, autonomia para a criatividade e a adaptação plástica a circunstâncias que tendem a ser específicas aos locais e aos momentos. Qualquer profissional que atua na ponta, sensível à complexidade da segurança pública, ao caráter multidimensional dos problemas e das soluções, ou seja, qualquer policial que atue como gestor ou gestora local da segurança pública, deve dialogar, evitar a judicialização sempre que possível, mediar conflitos, orientar-se pela prevenção e buscar acima de tudo garantir os direitos dos cidadãos. Dependendo do tipo de problema, mais importante do que uma prisão e uma abordagem posterior ao evento problemático, pode ser muito mais efetivo iluminar e limpar uma praça, e estimular sua ocupação pela comunidade e pelo poder público, via secretarias de cultura e esportes. Os exemplos são inúmeros e cotidianos.
Esse é o espírito do trabalho preventivo a serviço dos cidadãos, garantindo direitos. Esse é o método que já se provou superior. Mas tudo isso requer uma organização horizontal, descentralizada e flexível. Justamente o inverso da estrutura militar. ‘E o controle interno?’, alguém arguiria. Engana-se quem supõe que a adoção de um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional seja necessária. Se isso funcionasse, nossas polícias seriam campeãs mundiais de honestidade e respeito aos direitos humanos. Eficazes são o sentido de responsabilidade, a qualidade da formação e o orgulho de sentir-se valorizado pela sociedade. Além de tudo, corporações militares tendem a ensejar culturas belicistas, cujo eixo é a ideia de que a luta se dá contra o inimigo. Nas PMs, tende a prosperar a ideia do inimigo interno, não raro projetada sobre a imagem estigmatizada do jovem pobre e negro. Uma polícia ostensiva preventiva para a democracia tem de cultuar a ideia de serviço público com vocação igualitária e radicalmente avessa ao racismo.
A militarização da polícia justifica o seu comportamento? Uma vez desmilitarizada, qual seria o passo seguinte, uma vez que a corporação será a mesma?
Como disse, respondendo à primeira pergunta, desmilitarizar é apenas uma das mudanças indispensáveis. Isolada, cada uma delas será insuficiente. E não nos iludamos: toda reforma institucional da segurança pública será somente um passo numa caminhada mais longa e difícil, rumo à construção de uma sociedade efetivamente democrática e comprometida com o respeito aos direitos humanos, na qual a justiça mereça o nome que tem. A sociedade em seu conjunto terá de mudar, porque é ela quem autoriza, hoje, a barbárie policial, aplaudindo execuções, elegendo políticos que defendem o direito penal máximo e governos que acionam a violência do Estado.
As transformações, um dia, terão de incluir a legalização das drogas, que considero uma mudança fundamental. No momento, contudo, o que está em questão, e com máxima urgência, é salvar jovens negros e pobres do genocídio, é acabar com as execuções extra-judiciais, as torturas, a criminalização dos pobres e negros, é reduzir o número inacreditável de crimes letais intencionais, é suspender o processo de encarceramento voraz, que atinge exclusivamente as camadas sociais prejudicadas pelas desigualdades brasileiras, é sustar a aplicação seletiva das leis, que vem se dando em benefício das classes sociais superiores, dos brancos, dos moradores dos bairros afluentes de nossas cidades. Portanto, nada de idealizações ao avaliar as reformas propostas. O que não significa que cada passo não seja de grande relevância e mereça todo empenho de quem se sensibiliza com a tragédia nacional, nessa área, tão decisiva e negligenciada.
Historicamente, tivemos momentos que a luta pela desmilitarização da polícia aparece, como na promulgação da Constituição de 1988. Por que ela não aconteceu?
Não houve comprometimento suficiente das forças mais democráticas, a sociedade não se mobilizou, os lobbies corporativistas das camadas superiores das polícias se mobilizaram, as forças conservadoras se uniram e funcionou a chantagem dos antigos líderes da ditadura, em declínio, mas ainda ativos.
Nas jornadas de junho de 2013, e em seus desdobramentos, a brutalidade policial, que era e continua a ser cotidiana nos territórios populares, chegou à classe média e chocou segmentos da sociedade que antes ignoravam essa realidade ou lhe eram indiferentes. A esperança reside na continuidade dos movimentos sociais, que adquiriram novo ímpeto, e em sua capacidade de pautar esse debate e incluí-lo na agenda política. Não vai ser fácil. Mas tampouco será impossível. Abriu-se para nós, pela primeira vez, uma temporada de frestas.
Existem diversos projetos em tramitação para a desmilitarização da polícia: um proposto pelo senador Blairo Maggi, outro do ex-deputado Celso Russomanno, e o mais recente proposto pelo senador Lindbergh Farias, sob sua consultoria, a chamada PEC-51. No que eles se diferenciam?
Há mais de 170 projetos no Congresso Nacional propondo a reforma do artigo 144 da Constituição. Vários incluem a desmilitarização. Nenhuma proposta de emenda constitucional é tão ousada e completa quanto a PEC-51. Nenhuma incorporou 25 anos de militância, experiência, debate e pesquisas, ouvindo profissionais das polícias e da universidade, operadores da justiça e protagonistas dos movimentos sociais, e buscando o denominador comum. Isso não significa unanimidade. Há interesses contrariados e haverá resistências corporativistas, assim como posições ideológicas em oposição. Entretanto, o envolvimento de muitos movimentos, inclusive de policiais, já indica seu potencial para construir um consenso mínimo e sensibilizar a sociedade. 70% dos profissionais da segurança querem a mudança, como pesquisa de que participei demonstrou, em 2010. Não necessariamente querem a mesma mudança, mas o reconhecimento da falência do modelo atual é, em si mesmo, significativo.
Você ajudou a formular a PEC -51. Como foi isso e quais são as expectativas?
A PEC-51 visa reformar não apenas as PMs, desmilitarizando-as, mas o próprio modelo policial, atualmente baseado na divisão do ciclo do trabalho policial: uma polícia investiga, outra faz o trabalho ostensivo-preventivo. Pretende também instituir carreira única em cada polícia e transferir aos estados o poder de escolher o modelo que melhor atenda suas peculiaridades, desde que as diretrizes gerais sejam respeitadas. Hoje, em cada estado, as duas polícias, civis e militares, na verdade são quatro instituições ou universos sociais e profissionais distintos, porque há a polícia militar dos oficiais e dos não-oficiais (as praças), a polícia civil dos delegados e dos não-delegados como, por exemplo, os agentes, detetives, inspetores, escrivães etc.
A PEC propõe que o ciclo de trabalho policial seja respeitado e cumprido em sua integralidade, por toda instituição policial. Ou seja, toda polícia deve investigar e prevenir. Propõe também a carreira única no interior de cada instituição policial. E propõe que toda polícia seja civil. A transição para o novo modelo, caracterizado pelo ciclo completo, a carreira única e a desmilitarização, uma vez aprovada a PEC, dar-se ia ao longo de muitos anos, respeitando-se todo direito adquirido de todos os trabalhadores policiais, inclusive, é claro, dos que hoje são militares. O processo seria conduzido pelos estados, que criariam suas novas polícias de acordo com suas necessidades. A realidade do Acre é diferente de São Paulo, por exemplo.
A transição seria negociada e levada a cabo com transparência e acompanhamento da sociedade. As polícias seriam formadas pelo critério territorial ou de tipo criminal, ou por combinações de ambos. Um exemplo poderia ser o seguinte: o estado poderia criar polícias – sempre de ciclo completo, carreira única e civis – municipais nos maiores municípios, as quais focalizariam os crimes de pequeno potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099; uma polícia estadual dedicada a prevenir e investigar a criminalidade correspondente aos demais tipos penais, salvo onde não houvesse polícia municipal; e uma polícia estadual destinada a trabalhar exclusivamente contra, por exemplo, os homicídios. Há muitas outras possibilidades autorizadas pela PEC, evidentemente, porque são vários os formatos que derivam da combinação dos critérios referidos.
Acesse o trabalho completo do professor Luiz Eduardo Soares em seu site: http://www.luizeduardosoares.com/
Fonte: Site do OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Em vídeo relator do Marco da Mineração admite ser financiado por mineradoras

Da ADITAL

Está circulando na Internet um vídeo no qual o atual relator do novo Marco Legal da Mineração no Brasil, Projeto de Lei nº 37/2011, deputado federal Leonardo Quintão (PMDB/MG), admite ter tido sua campanha eleitoral financiada por empresas mineradoras. O fato estaria ferindo o Código de Ética da Câmara do Deputados, que em seu inciso VIII, do Artigo. 5º, afirma que: "fere o decoro parlamentar relatar matéria submetida à apreciação da Câmara dos Deputados de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral”.
Durante a gravação, que pode ser vista aqui, a fala do deputado pode ser ouvida claramente, a partir de 1h29min. "Sou financiado, sim, pela mineração, legalmente. Alguns ambientalistas dizem: 'você não pode ser relator porque é financiado pela mineração'. De forma alguma. (...) Não tenho nenhuma vergonha de, dentro da lei brasileira, ser financiado por mineradoras. (...) Eu defendo sim o setor mineral...”, afirma o deputado.
Na última terça-feira, 06 de maio, um grupo de organizações da sociedade civil e cidadãos comuns, encabeçados pela ONG Instituto Socioambiental (ISA), encaminhou uma representação por quebra de decoro parlamentar à Secretaria Geral da Mesa da Câmara Federal contra o deputado. Essa foi a primeira vez que uma representação popular foi apresentada contra um parlamentar pelo fato dele relatar um projeto de interesse direto de seus financiadores de campanha.
Segundo o Código de Ética da Câmara, o parlamentar deveria ter rejeitado a relatoria do projeto. Portanto, agora, a representação pede como punição que Quintão seja afastado do cargo.
"O Código de Ética da Câmara diz que é proibido a quem recebe financiamento de empresa relatar projetos que interessam a essas empresas. Esse é um caso evidente de conflito de interesses. Então, o que estamos pedindo é que o Código de Ética seja aplicado, que o relator seja afastado, pode ser afastado da relatoria, porque ele não tem independência necessária para tocar um assunto como esse, e que seja nomeado um novo relator para que a gente tenha um deputado isento", afirmou o advogado Raul do Valle, representante do ISA.
Contradições

Se na audiência pública, gravada em dezembro último, Quintão admite ter sido financiado por mineradoras, na última semana, em entrevista à Agência Câmara, o deputado mudou a história. De acordo com a reportagem, ele disse que não defende os interesses do setor mineral e afirmou que seu parecer é contrário, contradizendo o que havia dito anteriormente. Além disso, o deputado alegou que não há nenhuma irregularidade no financiamento de sua campanha. No entanto, na reportagem da Agência, ele não responde à denúncia de que está infringindo o Código de Ética.
Futuro da representação

O secretário-geral da Mesa Diretora da Câmara, Mozart Viana, informou que a representação será encaminhada ao presidente da Casa, Henrique Alves, e que ele vai decidir sobre o pedido. Caso seja admitida, a representação seguirá para a Corregedoria Parlamentar da Câmara, que emite um parecer a ser avaliado pelos integrantes da Mesa. Se a Mesa considerar necessário, pode enviar o caso ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar para instauração de processo disciplinar.

Com informações de www.ecodesenvolvimento.org.
Fonte: ADITAL

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Mensagem por ocasião das eleições 2014: "Pensando o Brasil"


A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil divulgou na sexta-feira, 9 de maio, durante entrevista coletiva, a mensagem "Pensando o Brasil: desafios diante das eleições 2014", aprovada pelos bispos do Brasil reunidos na 52ª Assembleia Geral, em Aparecida (SP). Atenderam a imprensa o arcebispo de Aparecida (SP) e presidente da CNBB, cardeal Raymundo Damasceno Assis; o arcebispo de São Luís (MA) e vice-presidente, dom José Belisário; o bispo auxiliar de Brasília (DF) e secretário geral, dom Leonardo Steiner. 
Na entrevista, cardeal Raymundo Damasceno Assis explicou que o texto "contém importantes reflexões para os cristãos e para toda a sociedade" que neste ano irão eleger presidente da República, governadores, senadores, deputados federais e estaduais. "Com este texto, fazemos uma convocação aos brasileiros para que exerçam o voto de forma consciente", exortou.
Dom Damasceno destacou três pontos fundamentais do texto: participação consciente nas eleições; a necessidade de conhecer os candidatos, sua história, e quais princípios e valores eles praticam e defendem; buscar candidatos que tenham compromisso com tantas reformas necessárias no país, especialmente a Reforma Política, que tem apoio da CNBB e outras entidades.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Censura atinge comunicadores e defensores de direitos humanos

O Sudeste brasileiro foi a região em que se deram mais casos de violações à liberdade de expressão contra comunicadores, registrando oito delas; Já contra defensores de direitos humanos, a região mais expressiva foi o Norte, também com oito

02/05/2014 - Da Adital
Censura não institucionalizada mata oito defensores de direitos humanos e quatro comunicadores no Brasil em 2013. Produzido pela organização Artigo 19, que trabalha pela liberdade de expressão e informação, o relatório "Violações à Liberdade de Expressão”, lista crimes e infrações como essas, registradas em todo o país contra comunicadores e defensores de direitos humanos no ano passado.
Segundo a publicação, os dados de 2013 mostram que, contra comunicadores, foram registrados 15 ameaças de morte, dois sequestros, oito tentativas de assassinato e quatro homicídios, num total de 29 violações. No caso de defensores de direitos humanos, há registros oficiais de oito homicídios, uma tentativa de assassinato e sete ameaças de morte, somando 16 violações. No caso dos homicídios contra defensores, seis dos oito casos tiveram como motivação denúncias sobre irregularidades envolvendo disputa territorial. Metade deles ocorreu no Estado do Pará.
No total, o monitoramento da organização registrou 45 violações graves no ano passado, sendo o Estado brasileiro o principal responsabilizado pela conjuntura e pela falta de medidas efetivas que evitem a perpetuação dos casos. Entre os defensores de direitos humanos afetados, estão lideranças rurais, ativistas ambientais, militantes políticos, líderes indígenas e quilombolas, entre outros. Figuram como comunicadores jornalistas, radialistas, blogueiros, apresentadores de televisão, fotógrafos, chargistas e comunicadores populares.
O relatório interpreta "censura” compreendendo que a violação impediu a continuidade do exercício profissional do comunicador ou do ativista, considerando não apenas a capacidade individual de expressão, como também a posição do veículo de comunicação ou da organização e comunidade de prosseguir com uma linha de atuação semelhante à da vítima.
"Impedir a liberdade de expressão de um defensor de direitos humanos não é somente uma ameaça individual, mas também funciona como uma maneira de desviar a atenção do tema da mobilização e do ativismo político desses defensores, ou seja, impedir que pautas maiores e de maior complexidade social sejam discutidas pela sociedade e possivelmente abordadas de maneira transformadora”, afirma-se o documento. Entre os suspeitos de mandantes dos crimes estão políticos, policiais e outros funcionários públicos, líderes do crime organizado, empresários, além de produtores rurais e extrativistas.
O Sudeste brasileiro foi a região em que se deram mais casos de violações à liberdade de expressão contra comunicadores, registrando oito delas. Em seguida vem a região Norte (seis) e Sul (seis), Nordeste (cinco) e Centro-Oeste (quatro). Já contra defensores de direitos humanos, a região mais expressiva foi o Norte (oito), seguida do Centro-Oeste (três), Sul (dois), Nordeste (dois) e Sudeste (um).
Segundo o relatório, quase 10% dos casos foram arquivados menos de um ano depois da violação e em 53% das ocorrências os possíveis autores não foram formalmente identificados pelo inquérito policial. Além disso, o tempo que os processos levam para ser julgados causa a prescrição do crime.
Recomendações à sociedade
Artigo 19 recomenda ao Estado brasileiro que atue com estudos, estrutura e estratégias articuladas com diversos setores da sociedade sobre as causas e reações aos casos, ofereça proteção aos comunicadores e ativistas, incentive e facilite o trabalho das empresas de mídia e organizações da sociedade civil.
Às organizações intergovernamentais e à comunidade internacional indica que priorizem a proteção de seus atores e acompanhem as movimentações em torno dos direitos humanos. Já se dirigindo às organizações da sociedade civil e de mídia o relatório recomenda a continuidade do trabalho, a produção de dados, além de equipamentos e treinamentos de segurança e proteção.

''Os dois Franciscos.'' A última entrevista de Jacques Le Goff


Vi Jacques Le Goff pela última vez poucos dias antes de ele morrer. Havia ido encontrá-lo na sua casa, no quinto andar de um palácio na zona norte de Paris. No seu escritório repleto de livros, em frente a uma escrivaninha enterrada debaixo de uma montanha de papéis – "um dos meus defeitos é a desordem", repetia ele frequentemente – começamos a falar de São Francisco e do Papa Bergoglio, comparando a figura do santo medieval com a do papa contemporâneo.
A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 01-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cansado, mas, como sempre, lúcido e rigoroso, Le Goff me contou como nascera o seu interesse pelo autor do Cântico das Criaturas, ao qual depois dedicou o livro San Francesco d'Assisi (Laterza). E me explicou a sua curiosidade em relação ao novo papa, em cuja ação via diversos elementos de continuidade com o santo.
Enquanto ouvia as suas recordações e as suas reflexões, eu não imaginava que, uma semana depois, o historiador francês faleceria em um hospital parisiense. O que se segue é uma parte da nossa última conversa.
Eis a entrevista.
Como foi que o senhor se ocupou de São Francisco?
É um interesse que eu cultivo há anos, desde a primeira vez que eu vi Assis no pós-guerra. Eu era um jovem historiador atraído pela Itália, um país onde eu estivera várias vezes, até porque a família da minha mãe veio da região de Imperia.
O que o impressionou em Assis?
Acima de tudo, a topografia dos lugares. Para mim, a ligação entre a história e a geografia sempre foi essencial, e em Assisa história social e espiritual de Francisco se expressavam geograficamente. Por um lado, a colina com a cidade que representava a vida comercial e política da época. Depois, a solidão e o afastamento da ermida de Cárceres, símbolo da nova forma de solidão monástica proposta pelo franciscanismo. Finalmente, a natureza que circunda a igreja de São Damião, o lugar da nova ecologia espiritual de São Francisco. Em suma, diante desses lugares, pareceu-me ver uma encarnação particularmente evidente em um movimento histórico.
Qual era a sua relação com a religião?
Eu comecei a me interessar pelo franciscanismo no momento em que eu me afastava definitivamente da religião católica. Quando jovem, eu recebera uma educação religiosa. Minha mãe, segundo a tradição italiana, era muito católica e devota. Meu pai, ao invés, era um filho do "affaire Dreyfus", portanto secular e anticlerical. Apesar de tal diferença, os meus pais eram muito unidos, e a religião nunca foi um assunto de disputa.
A sua formação é o resultado dessas duas tradições?
Sim, embora durante a juventude tenha prevalecido a influência da minha mãe. Depois, porém, eu me afastei progressivamente da fé. Quando cheguei em Assis, olhei para São Francisco com os olhos do historiador e não do crente. Interessavam-se me acima de tudo as suas ações e as suas escolhas, mais do que ele podia representar no plano religioso.
Para o senhor, qual é o aspecto central da figura de São Francisco?
A modernidade. Diante da nova sociedade em mutação, ele identifica claramente o problema da riqueza e das desigualdades. Tal consciência o levou a cuidar da pobreza. Por outro lado, se o atual papa escolheu o seu nome pela primeira vez na história da Igreja, é precisamente por causa de tal modernidade, em cujo rastro ele se inscreve. E se há um elemento comum a São Francisco e ao Papa Bergoglio, é justamente a luta contra o dinheiro e a defesa dos pobres.
Duas épocas diferentes, mas uma mesma preocupação?
No século XIII, para satisfazer as necessidades da economia e, em particular, do comércio, o uso do dinheiro tornou-se cada vez mais importante. Essa evolução, porém, produziu alguns excessos contra os quais São Francisco luta. Ainda hoje assistimos a uma revisão das atitudes em relação ao dinheiro, só que não se trata mais de uma reação a uma novidade, como no século XIII, mas sim de uma reação a uma crise, a que abalou a economia do início do século XXI. Papa Francisco é o papa de crise. Provavelmente uma parte dos cardeais que o elegeram viram nele o homem capaz de ajudar a Igreja e a sociedade a superar essa fase do mundo capitalista.
A crítica da riqueza é acompanhada pela necessidade de novas formas de espiritualidade, a serem contrapostas ao materialismo, filho do dinheiro?
Certamente. No século XIII, isso é particularmente evidente. São Franciscoprega a necessidade do retorno ao Evangelho, em cujo interior encontram-se as bases para combater os excessos da riqueza. Basta pensar na célebre frase: "É mais fácil um camelo passar pelo olho de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus". A espiritualidade contemporânea é menos fácil de decifrar. Hoje, ao lado do fascínio do dinheiro sempre muito forte, manifesta-se uma suspeita crescente em relação à riqueza e às suas manifestações. Daí uma demanda de espiritualidade, que, porém, talvez, não tem muito a ver com a espiritualidade cristã. Em todo o caso, a modernidade do Papa Francisco, assim como a do santo de Assis, nasce da vontade de lutar contra a materialização da sociedade, do espírito e das religiões, retomando, ao mesmo tempo, a tradição dos Evangelhos, para colocá-la novamente no centro da reflexão e da prática do mundo católico.
O Evangelho das origens em oposição aos Padres da Igreja?
Em parte, é isso. Mas também é preciso ressaltar que, ao contrário de todas as heresias que surgiram entre os séculos XII e XIII, Francisco permaneceu dentro da Igreja, porque sentia a necessidade dos sacramentos. Precisamente porque se trata de uma modernização que é também um retorno às origens, nele havia uma vontade de renovação, mas sem romper com as instituições. Assim como me parece que o pontífice está fazendo.
Que outro aspecto da modernidade de São Francisco parece-lhe particularmente importante?
Parece-me que a temática da ecologia pode falar de forma significativa para o nosso tempo. A ecologia implica a necessidade de espiritualidade não necessariamente ligada a uma religião. Pode, portanto, ser compartilhada por todos.
Quais são as características da preocupação ecológica de São Francisco?
Se olharmos para a forma como o santo de Assis se expressa e como ele constrói o franciscanismo, notamos que ele se distancia do maior movimento social do seu tempo, isto é, o desenvolvimento das cidades. São Francisco contrapõe a ele a natureza e a estrada, já que promove a pregação "a caminho". Além disso, se há uma obra literária que podemos considerar como ecologista é justamente o Cântico das Criaturas. A preocupação pela natureza é um traço importante da sua pregação, embora, por enquanto, parece-me que o Papa Francisco não o ressaltou particularmente. Talvez porque seja uma temática menos sentida naquele mundo da América Latina de onde ele provém.

(Fonte: IHU on line)

sábado, 3 de maio de 2014

Dom Tomás Balduino, fundador da CPT, fez a sua páscoa



É com grande pesar e muita tristeza que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) comunica a todos e todas o falecimento de Dom Tomás Balduino. Fundador da CPT, bispo emérito da cidade de Goiás e frade dominicano, Dom Tomás lutou por toda sua vida pela defesa dos direitos dos pobres da terra, dos indígenas, das demais comunidades tradicionais, e por justiça social. Nem mesmo com a saúde debilitada e internado no hospital ele deixava de se preocupar com a questão da terra e pedia, em conversas, para saber o que estava acontecendo no mundo.
Aos 91 anos, completados em dezembro passado, Dom Tomás Balduino, o bispo da reforma agrária e dos indígenas, nos deixa seu exemplo de luta, esperança e crença no Deus dos pobres. Ficamos, hoje, todos e todas um pouco órfãos, mas seguimos na certeza de quem Dom Tomás está e estará presente sempre, nos pés que marcham por esse país e nas bandeiras que tremulam por esse mundo em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
Dom Tomás faleceu em decorrência de uma trombo embolia pulmonar, às 23h30 de ontem, 02 de maio de 2014. Ele permaneceu internado entre os dias 14 e 24 de abril último no hospital Anis Rassi, em Goiânia. Teve alta hospitalar dia 24, e no dia seguinte foi novamente internado, porém desta vez no Hospital Neurológico, também em Goiânia.
O Corpo será velado na Igreja São Judas Tadeu, no Setor Coimbra, em Goiânia, até às 10 horas do domingo, dia 4 de maio, momento em que será concelebrada a Eucaristia, e logo em seguida será transladado para a cidade de Goiás (GO), onde será velado na Catedral da cidade até às 9 horas da segunda-feira, 5 de maio, e logo em seguida será sepultado na própria Catedral.
Biografia de Dom Tomás Balduino
Dom Tomás Balduino nasceu em Posse, Goiás, no dia 31 de dezembro de 1922. Ele é filho de José Balduino de Sousa Décio, goiano, e de Felicidade de Sousa Ortiz, paulista. Seu nome de batismo é Paulo, Paulo Balduino de Sousa Décio. Foi o último filho homem de uma família de onze filhos, três homens e oito mulheres. Ao se tornar religioso dominicano recebeu o nome de Frei Tomás, como era costume.
Até os cinco anos de idade viveu em Posse. Depois a família migrou para Formosa, onde seu pai se tornou promotor público, depois juiz e se aposentou como tal.
Fez o Seminário Menor – Escola Apostólica Dominicana – em Juiz de Fora, MG. Fez os estudos secundários no Colégio Diocesano, dirigido pelos irmãos maristas, em Uberaba.  Cursou filosofia em São Paulo e Teologia em Saint Maximin, na França, onde também fez mestrado em Teologia.
Em 1950, lecionou filosofia em Uberaba. Em 1951 foi transferido para Juiz de Fora como vice-reitor da então Escola Apostólica Dominicana e lecionou filosofia, na Faculdade de Filosofia da cidade.
Em 1957, foi nomeado superior da missão dos dominicanos da Prelazia de Conceição do Araguaia, estado do Pará, onde viveu de perto a realidade indígena e sertaneja. Na época a Pastoral da Prelazia acompanhava sete grupos indígenas. Para desenvolver um trabalho mais eficaz junto aos índios, fez mestrado em Antropologia e Linguística, na UNB, que concluiu em 1965. Estudou e aprendeu a língua dos índios Xicrin, do grupo Bacajá, e Kayapó.
Para melhor atender a enorme região da Prelazia que abrangia todo o Vale do Araguaia paraense e parte do baixo Araguaia mato-grossense, fez o curso de piloto de aviação. Amigos solidários da Itália o presentearam com um teco-teco com o qual prestou inestimável serviço, sobretudo no apoio e articulação dos povos indígenas. Também ajudou a salvar pessoas perseguidas pela Ditadura Militar.
Em 1965, ano em que terminou o Concílio Ecumênico Vaticano II, foi nomeado Prelado de Conceição do Araguaia. Lá viveu de maneira determinante e combativa os primeiros conflitos com as grandes empresas agropecuárias que se estabeleciam na região com os incentivos fiscais da então SUDAM, e que invadiam áreas indígenas, expulsavam famílias sertanejas, os posseiros, e traziam trabalhadores braçais de outros Estados, sobretudo do nordeste brasileiro, que eram submetidos, muitas vezes, a regimes análogos ao trabalho escravo.
Em 1967, foi nomeado bispo diocesano da Cidade de Goiás. Nesse mesmo ano foi ordenado bispo e assumiu o pastoreio da Diocese, onde permaneceu durante 31 anos, até 1999 quando, ao completar 75 anos, apresentou sua renúncia e mudou-se para Goiânia. Seu ministério episcopal coincidiu, a maior parte do tempo, com a Ditadura Militar (1964-1985).
Dom Tomás, junto à Diocese de Goiás, procurou adequar a Diocese ao novo espírito do Concílio Ecumênico Vaticano II e de Medellín (1968). Por isso sua atuação, ao lado dos pobres, no espírito da opção pelos pobres, marcou profundamente a Diocese e seu povo. Lavradores se reuniam no Centro de Treinamento onde Dom Tomás morava, para definir suas formas de organização e suas estratégias de luta. Esta atuação provocou a ira do governo militar e dos latifundiários que perseguiram e assassinaram algumas lideranças dos trabalhadores. Em julho de 1976, Dom Tomás foi ao sepultamento do Padre Rodolfo Lunkenbein e do índio Simão Bororo, assassinados pelos jagunços, na aldeia de Merure, Mato Grosso. Em sua agenda estava programada uma outra atividade. Soube depois, por um jornalista, que durante esta atividade programada, estava sendo preparada uma emboscada para eliminá-lo.
Alguns movimentos nacionais como o Movimento do Custo de Vida, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária, encontraram apoio e guarida de Dom Tomás e nasceram na Diocese de Goiás.
Dom Tomás foi personagem fundamental no processo de criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972, e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975.  Nas duas instituições Dom Tomás sempre teve atuação destacada, tendo sido presidente do CIMI, de 1980 a 1984 e presidente da CPT de 1999 a2005. A Assembleia Geral da CPT, em 2005, o nomeou Conselheiro Permanente.
Depois de deixar a Diocese, além de ser presidente da CPT, desenvolveu uma extensa e longa pauta de conferências e palestras em Seminários, Simpósios e Congressos, tanto no Brasil quanto no exterior. Por sua atuação firme e corajosa recebeu diversas condecorações e homenagens Brasil afora. Em 2002, a Assembleia Legislativa do Estado de Goiás lhe concedeu a medalha do Mérito Legislativo Pedro Ludovico Teixeira. No mesmo ano recebeu o Título de Cidadão Goianiense, outorgado pela Câmara Municipal de Goiânia. 
Foi designado, em 2003, membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, CDES, do Governo Federal, cargo que deixou por sentir que pouco ou nada contribuía para as mudanças almejadas pela nação brasileira. Foi também nomeado membro do Conselho Nacional de Educação.
No dia 8 de novembro de 2006, Dom Tomás recebeu da Universidade Católica de Goiás (UCG) o título de Doutor Honoris Causa, devido ao comprometimento de Dom Tomás com a luta pelo povo pobre de Deus.
No dia 18 de abril de 2008 recebeu em Oklahoma City (EUA), da Oklahoma City National Memorial Foudation, o prêmio Reflections of Hope. A organização considerou que as ações de Dom Tomás são exemplos de esperança na solução das causas que levam a miséria de tantas pessoas em todo o mundo. A premiação Reflections of Hope foi criada em 2005 para lembrar o 10º aniversário do atentado terrorista de Oklahoma – quando um caminhão-bomba explodiu em frente a um edifício, matando 168 pessoas – e para homenagear aqueles que representam a esperança em meio à tragédia e dedicam suas vidas para melhorar a vida do próximo.
De 22 até 29 de março 2009 foi em Roma para participar das palestras em homenagem de Dom Oscar Romero e dos 29 anos do seu assassinato.
Em 2012 a Universidade Federal de Goiás (UFG) também lhe outorgou o título de Doutor Honoris Causa. Em dezembro do mesmo ano, durante as comemorações dos seus 90 anos, a CPT homenageou-o dando o seu nome ao Setor de Documentação da Secretaria Nacional, que passou a se chamar “Centro de Documentação Dom Tomás Balduino”.

Mais informações:
Assessoria de Comunicação CPT Nacional 

@cptnacional
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