Claudemir Francisco Alves*
Uma data dedicada às mulheres
para tratar de mulheres e homens
A celebração do dia internacional
da mulher, no dia 08 de março, adquiriu ao longo dos anos um caráter festivo e
forte apelo comercial. Tornou-se hábito parabenizar as mulheres nesse dia como
se elas merecessem cumprimentos pelo simples fato de serem do sexo feminino. É
como se, por si só, essa característica de nascença as tornasse um ser
diferenciado – talvez um símbolo da ternura e da autodoação que se associa à
maternidade.
Originalmente, no entanto, a
decisão de se dedicar essa data para a reflexão sobre a situação das mulheres
na sociedade remete a condições materiais muito duras. Desde a transição para o
modo de produção capitalista, as mudanças econômicas e sociais afetaram
intensamente as mulheres. Submetidas a condições diferenciadas na exploração de
mão de obra, elas sofrem formas de violência que não afetam da mesma forma os
homens.
Mesmo tendo passado muito tempo,
no Brasil do século XXI, mulheres ainda recebem aproximadamente 25% a menos no
exercício de mesmas funções. Por vezes isso ocorre mesmo quando elas têm
formação escolar mais elevada do que seus colegas de sexo masculino. Além
disso, mulheres têm menor presença em cargos de chefia e liderança nos mundos
do trabalho. Algo muito semelhante e até mais agudo se verifica no meio
político.
Esse fenômeno, que ocorre na
esfera pública da vida, adquire outras configurações nos espaços privados. De
modo diverso do que ocorre com os homens, as mulheres sofrem outras formas específicas
de violência física, psicológica e sexual, além de serem afetadas por formas mais
sutis e menos perceptíveis, como a divisão desigual do trabalho doméstico que
as sobrecarrega.
Parece haver um descompasso entre
esses fatos e o tom de exaltação que a mídia adota para tratar da data
atribuída às mulheres. Esse mesmo tom se dissemina nas conversas cotidianas e
nas redes sociais. Trata-se de uma linguagem carregada de um olhar excessivamente
romântico a respeito das mulheres. De fato, nessa forma de lidar com o assunto,
reduzem-se as mulheres a uma ideia, a uma concepção poética. É como se se
falasse da mulher, mas não das mulheres. Aparecem aspectos julgados belos e
dignos: um ideal de mulher composto por um punhado de estereótipos. Ao mesmo
tempo, ficam apagadas as contradições, as desigualdades e os conflitos
enfrentados no cotidiano delas. A forma como elas são efetivamente tratadas na
sociedade não é posta em evidência.
Fala-se de mulher, mas não se
discutem as relações de gênero. O discurso festivo mostra apenas aquelas
diferenças entre mulheres e homens que se tem por conveniente destacar. São
diferenças aparentemente consideradas positivas, como certas características
psicológicas ou comportamentais que habitualmente são naturalizadas como se
fossem específicas do gênero feminino. No mesmo ato, a linguagem comum e a apresentação
midiática do dia das mulheres obliteram tudo que, se exposto, produziria mal
estar e faria aparecer os conflitos. Desse modo, mostra-se, pela via da
negação, que nem tudo é tão belo como se pinta.
Nas seções abaixo, recorre-se a dados
recentes para mostrar que, no campo das desigualdades de gênero, há, sim, muito
a se comemorar nas últimas décadas, mas há também situações e problemas que
permaneceram inalterados. Não parece suficiente tratar dos avanços sem que se
considere também que há muito a ser conquistado para que as relações de gênero
sejam mais igualitárias e a sociedade se torne menos machista e sexista.
O direito a mandar no próprio corpo
Segundo o Panorama Econômico e Social, publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), nos
últimos vinte anos, houve avanços importantes rumo ao objetivo de se erradicar
a violência contra mulheres: aumentou o reconhecimento de direitos, ocorreram
algumas reformas legais e certas políticas implementadas nos países que compõem
a região têm o potencial de levar a uma diminuição da desigualdade de gênero.
Alguns aspectos são observados
pela CEPAL ao avaliar o nível de autonomia feminina. O primeiro deles diz
respeito ao domínio físico, isto é, o direito de decidir e controlar o próprio
corpo. O segundo aspecto é econômico e se trata da capacidade de gerar renda e
de poder decidir o destino dos recursos financeiros da família. Por fim, o
terceiro enfoca a possibilidade de a mulher participar plenamente das decisões
que afetam sua vida e a coletividade.
Qualquer desses três aspectos tem
especificidades nacionais e dificilmente se poderia tratar de modo uniforme
países que são diversos sob muitos pontos de vista. Contudo, também é possível
perceber características comuns que permitem traçar tendências regionais. Por
exemplo, no tocante ao aspecto da autonomia física, na América Latina as
mulheres ainda encontram limitações no acesso à assistência de saúde sexual e
reprodutiva. Não são um direito universalmente garantido a informação e os
serviços de controle de fecundidade. Os segmentos populacionais mais carentes
economicamente padecem ainda mais pela falta de formação para o exercício
consciente da sexualidade.
Uma das consequências disso é o
aumento da fecundidade na adolescência. O número de adolescentes grávidas –
principalmente entre aquelas de mais baixa renda e com menor nível de
escolaridade – segue uma tendência inversa à taxa de fecundidade das mulheres
em geral. Embora o número médio de filhos por mulher venha diminuindo, o número
de casos de maternidade na adolescência cresceu em alguns países da região.
Esse quadro aparece associado ao maior risco de essas jovens serem alvo de violências
física e sexual. Por fim, a gravidez e a maternidade na adolescência se tornam
obstáculo para a superação da pobreza, já que as jovens mães enfrentam maiores
dificuldades para serem incluídas no mercado de trabalho.
O direito de ganhar e de gastar seu próprio
dinheiro
Do ponto de vista da autonomia
econômica, nos últimos dez anos ocorreram uma das mais importantes
transformações sociais e econômicas na América Latina e no Caribe. As mulheres
compõem a metade da força de trabalho na região. Só nesta última década, cerca
de 22 milhões de mulheres conseguiram acesso a trabalho e renda nesses países,
embora esse crescimento não tenha se dado de maneira igualitária: há diferenças
etárias, de nível educacional e de classe. Por exemplo, no estrato social mais
rico, 62% das mulheres estão inseridas no mercado de trabalho, enquanto no
segmento mais pobre apenas 38,4% delas conseguem garantir emprego e renda.
Sem renda própria, não pode haver
autonomia econômica para a maioria das mulheres. Essa constatação se torna
importante, quando se considera que significativa parcela das mulheres trabalha
sem remuneração. Elas assumem majoritariamente as tarefas domésticas e tais
tarefas, por uma questão cultural, tendem a não ser tratadas como trabalho e
caem na invisibilidade. Além disso, mulheres tendem a assumir mais as tarefas
do cuidado dos filhos, dos doentes, dos idosos.
O número de horas destinadas ao
trabalho doméstico não remunerado é alto também entre as mulheres que mantêm
atividades fora do lar. Estima-se que esse tempo seja quatro vezes maior do que
o tempo dedicado por homens a esse mesmo tipo de tarefa.
O direito de intervir no futuro de sua nação
Seis mulheres presidem países na
América Latina e no Caribe atualmente (Brasil, Nicarágua, Panamá, Chile,
Argentina e Costa Rica). Também vem crescendo a participação delas nos poderes
Legislativo e Judiciário. Nos últimos dez anos, aumentou de 19% para 26% a
presença das mulheres nas casas legislativas. Nesse aspecto, porém, há uma
grande diferença entre os países. Alguns se aproximam dos 40%; outros, como é o
caso do Brasil, não atinge nem 10% de presença feminina.
Apesar do número menor do que o
de homens no poder, a participação das mulheres em espaços onde se definem os
rumos da cidade, do estado e da nação já tem contribuído e é necessária para
introduzir na pauta certos temas que haviam ficado circunscritos à vida
privada. Eram assuntos relegados às mulheres como se fosse natural que (apenas)
elas se ocupassem deles. Desse modo, ficavam em segundo plano e não se tornavam
objeto de políticas públicas tudo que estava relacionado ao cuidado da casa, dos
filhos, dos idosos e doentes, assim como da saúde sexual e reprodutiva. Por
fim, a própria violência doméstica não era enfrentada como um problema social e
político.
Embora longe de serem resolvidas,
essas questões têm se tornado objeto de ações públicas e têm ganhado mais
visibilidade nas sociedades latino-americanas.
O direito de não sofrer violência
A violência física e sexual
continua sendo um problema em todos os países da América Latina e do Caribe. Os
dados disponíveis são controversos e supõe-se que estejam subestimados.
Em se tratando apenas do caso
brasileiro, no entanto, segundo o Laboratório de Análises Econômicas,
Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), do Instituto
de Economia da UFRJ, entre 2009 e 2012, foram registrados 361.201 casos de
violência doméstica e sexual. Isso corresponde aproximadamente a 90.300
notificações por ano; 7.525 por mês; 251 casos por dia; ou 10,5 ocorrências por
hora. Os números se referem à violência sofrida por pessoas de ambos os sexos,
mas as mulheres representam 67,1% das vítimas.
A agressão parte, na maioria dos
casos, do companheiro ou do ex-companheiro. Uma razão importante para a
persistência da violência contra a mulher é a naturalização desse ato, como se
a mulher precisasse ser tutelada, controlada e até “educada” pelo homem.
A violência ocorre em todos os
estratos sociais e econômicos, mas aparece relacionada com a falta de autonomia
física e falta de poder de tomar autonomamente as decisões dos rumos de sua
própria vida. Frequentemente, a violência está associada à vulnerabilidade e à
dependência da mulher.
O que acontece dentro de casa também é política
É ilustrativo pensar que, no
Brasil, em outubro de 2014, o rendimento médio de um homem branco, residente
nas principais regiões metropolitanas do país, era de R$ 2.962,98. Já uma
mulher branca recebia R$ 2.199,94. Isso significa que, na média, as mulheres
brasileiras, moradoras dessas grandes cidades, recebem mais de um terço a menos
do que os homens.
Quando se considera o recorte
racial, verifica-se uma diferença ainda maior. Considerando o rendimento médio
de mulheres e homens, constata-se que, no Brasil, em outubro de 2014, um branco,
habitante de uma das seis maiores regiões metropolitanas, recebia em média R$
2.603,14. Uma pessoa negra ou parda, nas mesmas condições, recebia R$ 1.514,61.
As desigualdades que se
manifestam dentro de casa têm repercussão social. Relações domésticas desiguais
estão conectadas com relações econômicas e sociais desiguais.
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