Natal
Rubem Braga
É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda.
Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável
melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância
alguns amigos. Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem
alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas
felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e
creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!
Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá
dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho,
perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa,
nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da
dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que
parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça,
uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.
Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa;
evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também,
no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol.
Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são
irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um
homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente
em honra de muitas pessoas.
De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez
seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum
lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a
esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua
e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar;
tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da
vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!
0 motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho.
Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a
cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista
retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com
violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.
Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha
também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio
devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de
uma família amiga.
Texto extraído do livro
"A Borboleta Amarela", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág.
124.