"Há
um componente novo nessa movimentação social a requerer precisa identificação,
a que o repertório de interpretação corrente nos últimos anos não concede
acesso. A chave somente se fará disponível quando se compreender que se está
diante de uma insurgência democrática em favor do reconhecimento de novas
identidades sociais e de direitos de participação na vida pública,
especialmente das novas gerações", constata Luiz Werneck Vianna, professor e pesquisador da PUC-Rio, em artigo
publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, 18-06-2013.
Segundo
ele, "a hora da política está chegando e, com ela, a da remoção das
instituições e práticas nefastas que a têm degradado, tal como nesta forma
bastarda de presidencialismo de coalizão sob a qual se vive, engessando a
moderna sociedade brasileira no passado e no anacronismo destes novos coronéis
da vida republicana".
Eis
o artigo.
Eppur
si muove, mas ao contrário do movimento da Terra, que não sentimos, na frase
famosa de Joaquim Nabuco, este movimento que aí está não dá para não
perceber. Em cima, em baixo, nas grandes capitais, nas periferias, no coração
do Brasil, lá em Belo Monte, entre os índios, os sem-teto, os sem-terra,
nas corporações profissionais e entre os estudantes, de dentro dessa crosta
encardida que, há anos, a tudo abafava há sinais de vida nova.
Os
interesses e as ideias de cada qual são díspares, desencontrados uns dos
outros, como seria de esperar numa sociedade que não mais reflete sobre si, que
destituiu a política da sua dignidade e converteu os partidos políticos em
instrumentos sem vida, máquinas eleitorais especializadas na reprodução
política dos seus quadros.
Os
acontecimentos recentes em São Paulo, no Rio de Janeiro e em
outras grandes cidades - especialmente no caso paulista - somente na aparência
podem ser tomados como um raio em dia de céu azul. Igualmente enganoso seria
compreendê-los como um mero, embora significativo, episódio de políticas
públicas de transporte urbano.
As
reportagens dos meios de comunicação, em particular as da imprensa escrita, têm
trazido à luz a identidade social de algumas lideranças desse movimento de
ocupação popular das ruas, não poucas cursando universidades de elite, para as
quais o aumento irrisório nas tarifas dos transportes não teria como explicar a
reação, à primeira vista desproporcional, aos poucos centavos acrescidos a seu
preço.
A
memória política talvez ajude a pensar o caso em tela: no segundo ano do
governo de Juscelino Kubitschek, em 1956, um movimento de estudantes
durante vários dias tomou as ruas na chamada greve dos bondes, no Rio de
Janeiro, então capital federal, e seu alcance foi de tal natureza que se temeu
a iminência de uma crise institucional. A crise foi contornada politicamente,
com o próprio presidente Kubitschek intercedendo junto ao presidente
da União Nacional dos Estudantes (UNE), a quem recebeu em seu gabinete
presidencial.
Nesse
registro, o que vale notar é que aquela movimentação estudantil transcendia a
sua motivação declarada, o aumento do preço das passagens, encobrindo um malaise -
sintoma que não escapou das sensíveis antenas políticas do presidente - que se
arrastava desde o suicídio do presidente Getúlio Vargas e a
subsequente turbulenta sucessão presidencial, em meio a golpes e contragolpes
de Estado.
Não
há exagero em sustentar que a feliz solução daquela crise - exemplar em termos
de sua orientação democrática - vai estar na raiz da afirmação dos movimentos
sociais nos anos subsequentes, os chamados "anos dourados", que viram
nascer formas expressivas do moderno na cultura brasileira, como no Teatro
de Arena, no Cinema Novo e na Bossa Nova, manifestações para as
quais a UNE e o seu Centro Popular de Cultura desempenharam
um não pequeno papel.
Foi
assim que, de modo imprevisto e paradoxal, a modernização das estruturas
econômicas do Brasil, desencadeada por decisões discricionárias do Poder
Executivo - os "cinquenta anos em cinco" -, pôde se tornar
compatível, numa sociedade dominada pelo tradicionalismo, com a emergência do
moderno com as postulações que lhes são intrínsecas de autonomia da vida
social.
O
paralelo com a situação atual não é arbitrário: hoje, tal como nos anos 1950,
vive-se um tempo de acelerada modernização promovida por indução da ação
estatal, que vem revolvendo as suas estruturas sociais e ocupacionais e
provocando o realinhamento, em curto espaço de tempo, da posição de classes e
de estratos sociais.
Entre
tantos processos dessa natureza, deve ser notada a nova configuração das
chamadas classes médias, na esteira do processo de desenvolvimento capitalista
do Brasil e da mobilidade social que a acompanha, inteiramente distintas, em
termos de mentalidade e de inscrição no mercado, das que as antecederam.
Como
inevitável, tais transformações vêm repercutindo no sentido de enriquecer as
agendas de demandas sociais, como se verifica com o tema da mobilidade urbana
que somente agora chega à ribalta. Contudo, esse ângulo tópico é apenas a ponta
mais sensível das atuais manifestações - muitas delas mal escondendo a carga de
fúria de que são portadoras - que irrompem por toda parte em diferentes
cenários, não apenas urbanos.
Porém,
sem dúvida, estamos longe das Praças Tahir, do Egito, e Taksim, da
Turquia. Os movimentos sociais que emergem diante de nós não estão confrontados
com um regime autoritário - vive-se na plenitude das liberdades civis e
públicas.
Há,
no entanto, um componente novo nessa movimentação social a requerer precisa
identificação, a que o repertório de interpretação corrente nos últimos anos
não concede acesso. A chave somente se fará disponível quando se compreender
que se está diante de uma insurgência democrática em favor do reconhecimento de
novas identidades sociais e de direitos de participação na vida pública,
especialmente das novas gerações.
A
hora da política está chegando e, com ela, a da remoção das instituições e
práticas nefastas que a têm degradado, tal como nesta forma bastarda de presidencialismo
de coalizão sob a qual se vive, engessando a moderna sociedade brasileira
no passado e no anacronismo destes novos coronéis da vida republicana.
Há
riscos na hora presente, e um dos maiores deles é o de não agir no sentido de
evitar que a juventude se distancie dos valores da democracia, o que pode vir a
ocorrer por intervenções desastradas dos atuais governantes. O desfecho de 2013
não pode repetir o de 1968.
(Fonte: IHU e Estadão)
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