A confusão está armada. Supremo
e Congresso entraram em rota de colisão. Gilmar Mendes, em curta declaração,
apontou o culpado: o Poder Executivo. O Supremo se exime de culpa e
responsabiliza os demais Poderes. Suas repetidas intervenções teriam um único
motivo: pôr ordem no coreto. A omissão do Congresso, sua incapacidade de
promover reformas institucionais teria forçado as repetidas investidas do Judiciário
na seara alheia.
Rápida revisão das decisões
recentes permite concluir o contrário. Da imposição da verticalização das
coligações à intervenção do ministro Gilmar Mendes na semana passada, o Supremo
tem contribuído mais para confundir do que para esclarecer, para lembrar o
refrão do saudoso Chacrinha. As decisões emanadas do Poder Judiciário têm sido
tão ou mais "casuísticas" do que as do Congresso Nacional; todas, sem
exceção, prenhes de efeitos imediatos para a disputa político- partidária. Não
há isenção possível neste tipo de questão. Tampouco é possível argumentar em
nome do fortalecimento da democracia ou coisa do gênero. Qualquer decisão
tomada favorecerá alguns partidos e prejudicará outros.
Segundo o noticiário da
imprensa, o ministro Gilmar Mendes teria identificado vícios formais na
tramitação da proposta apresentada pelo deputado Edinho Araújo (PMDB-SP). O
Congresso teria agido de forma rápida demais. Não deixa de ser irônico. O
Congresso é sempre atacado por sua omissão ou morosidade. Quando é ágil,
levanta suspeição. Tamanha celeridade só se justificaria por razões escusas.
O fato é que o Congresso pode
agir rapidamente e o faz com frequência. O ritmo da tramitação das matérias é
ditado pela maioria, respeitada as normas regimentais. A intervenção do
ministro se justificaria se estas normas e ritos tivessem sido violados. Foram?
Se sim, quais? A opinião pública não foi informada dos vícios formais
identificados pelo ministro Gilmar Mendes. Pelo que se depreende do que
publicado na imprensa, a celeridade em si foi questionada. A suspeição motivou
a intervenção.
Muitos analistas comungam da
desconfiança que motivou a medida cautelar. O Congresso só se moveria com esta
presteza para defender interesses particulares e imediatos. Por isto, mesmo, a
medida foi comparada ao Pacote de Abril. O governo estaria alterando a
legislação em causa própria. No entanto, é preciso ter claro que o Congresso
estava apenas restaurando o status quo vigente antes da surpreendente
intervenção do Supremo, concedendo tempo de TV ao partido criado por Kassab.
Note-se: a emenda mais polêmica foi proposta pelo DEM e não por um partido da coalizão
que apoia a presidente Dilma.
O tempo no Horário Gratuito de
Propaganda Eleitoral (HPGE) conferido a cada partido é proporcional à sua
bancada na Câmara dos Deputados. Partidos ganhavam tempo na TV na medida em que
conseguiam aumentar suas bancadas. O Congresso Nacional, tempos atrás, barrou
esse incentivo à migração partidária, impondo como referência a bancada eleita,
isto é, a vontade do eleitor expressa nas urnas nas últimas eleições. Com esta decisão,
um dos principais estímulos à migração partidária foi neutralizado. Foi esta
decisão do Congresso Nacional - e não a imposição da fidelidade partidária pelo
STF - a maior responsável pela diminuição das dança das cadeiras. Aliciar
parlamentares para ganhar tempo na TV deixou de figurar entre as estratégias
dos pré-candidatos à Presidência.
O STF, ao decidir que o PSD
tinha direito a tempo na TV proporcional à sua bancada, reintroduziu, pela
porta dos fundos, a motivação para a migração partidária. A estratégia teve que
ser devidamente adaptada. Em lugar de atrair deputados, cria-se um novo
partido. As restrições impostas pelo Congresso Nacional podem, agora, ser
contornadas. A oportunidade foi prontamente percebida e alguns partidos, não
necessariamente os mais fisiológicos, logo viram como tirar proveito das novas
oportunidades.
Repentinamente, após anos de
convivência, PPS e PMN descobriram suas afinidades ideológicas. Note-se o que
está em jogo. Não se trata apenas de somar os tempos de TV que PPS e PMN têm
direito em função da bancada que elegeram em 2010. Se fosse isto, a fusão teria
o mesmo efeito que uma coligação. A fusão soma tempo de TV desde que seja capaz
de atrair novos parlamentares, por exemplo, do DEM e do PMDB. Estes, ao se
juntarem ao novo partido, carregam consigo seu tempo de TV. E é assim por força
da decisão tomada pelo Supremo quando da criação do PSD.
A contradição entre esta
decisão do Supremo e a que impôs a fidelidade partidária é patente. Afinal, a
quem pertence o mandato parlamentar? Na realidade, ao assegurar tempo na TV ao
PSD, o Supremo contradisse decisão tomada pouco antes, quando a bancada do PSD
teve negada sua participação na distribuição de cargos no interior do Poder
Legislativo. Depois desta decisão, ninguém mais, nem mesmo o PSD e seus aliados
esperavam que o partido ganhasse tempo na TV.
Nestes termos, a proposta do
deputado Edinho Araújo (PMDB-SP) e a emenda do DEM são reações a um
"casuísmo". O Supremo alterou as regras do jogo. Difícil sustentar
que a intervenção do Judiciário tenha contribuído para fortalecer os partidos e
aperfeiçoar a democracia. Basicamente, a proposta, que o ministro Gilmar barrou
antes que sua tramitação chegasse a termo, simplesmente restaurava o status quo.
As intervenções do Supremo no
terreno da legislação eleitoral e partidária - é tempo de afirmá-lo com todas
as letras - carecem de coerência. O Supremo, por paradoxal que possa parecer,
tem sido fonte de instabilidade. Ao pretender legislar no campo eleitoral, não
tem como evitar atrelar suas decisões à disputa político-partidária. Perde
assim a isenção para reclamar a capacidade de arbitrar uma luta em que se
envolve.
Fernando Limongi é
professor-titular de ciência política da Universidade de São Paulo (USP)
(Fonte: Jornal Valor, de 30 de
abril de 2013)
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